O
papa renunciou. O mundo sabe das tensões internas no seio da Igreja formada por
pessoas com suas limitações humanas e envolvidas no clima intolerável nas
disputas de poder nos corredores do Vaticano que se reflete nas estruturas
eclesiais e no povo de Deus mundo afora.
Esse curto
vazio de poder, atípico, não por morte mas por sofrimento insuportável do papa
idoso ante esse quadro de conluios e vaidades, próprio das cortes imperiais,
acorda os católicos para o que poderá ser um kayrós, tempo propício para
mudanças profundas na vida da Igreja. Ou permanecerá esse clima perverso pela
simples mudança do ocupante do trono em que Jesus jamais aceitaria sentar-se,
cercado por tão imponentes vestes vermelhas.
O
papa deveria ser de fato uma réplica, ainda que imperfeita, de Jesus, sem
poderes imperiais opostos à colegialidade, reconhecido pelos cristãos como
servidor do Povo de Deus, capaz de ouvir os clamores desse povo, sem os filtros
dos cortesãos. Exerceria sua missão no vasto mundo, sem vestuário imponente,
visitaria às vezes o Vaticano, lugar interessante e bem equipado para reuniões
de clérigos e laicos, entendido como sede administrativa de um organismo
disperso pelo planeta, conduzida por funcionários competentes e honestos, sem
uso de símbolos de autoridade divina.
O
papa seria o símbolo da unidade de um extenso corpo de representantes dos
cristãos católicos, talvez formado pelos presidentes das atuais conferências
episcopais nacionais, estes, por sua vez, eleitos democraticamente por eleitores
escolhidos pelos organismos eclesiais intermediários de seu país –
representantes do clero, dos movimentos de leigos e de outros segmentos do povo
de Deus.
Seria o
início de um retorno moderno às práticas do passado, antes da conversão do povo
de Deus ao Império Romano de Constantino, no século IV. Essa conversão foi
fatal. Concílios passaram a ser convocados pelo Imperador romano. Essa rendição
ao poder político está na origem dos desvios da Igreja em relação à inspiração
original dos homens e mulheres seguidores do judeu Jesus de Nazaré.
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Os
dirigentes desse contingente já então numeroso de cristãos passaram a vestir-se
como o imperador, adotando seus símbolos de poder, frequentando sua corte e seus
palácios. Esses espaços e símbolos de poder foram aos poucos se consolidando na
adolescência da Igreja, como práticas convenientes e prazerosas do corpo
eclesiástico, agora adotados como súditos do
império.
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Passados
tantos séculos, esse modelo de Igreja tornou-se anacrônico, não funcional,
distanciando-se da inspiração original, condenado a crises permanentes difíceis
de administrar. Normas eclesiásticas igualmente anacrônicas permanecem
teimosamente na vida da Igreja, em conflito com as demandas de cristãos adultos,
que já não aceitam as bases em que se apoiam suas normas e doutrinas hoje
inconsistentes: questionam-se o casamento sacramental dos divorciados, uso de
medicamentos para o planejamento familiar, celibato obrigatório dos clérigos
impondo um estilo masculino de cuidar da comunidade cristã, a participação
efetiva e plena das mulheres na vida da Igreja, nas funções ainda reservadas aos
homens, a demonização da sexualidade humana, e tantas outras questões de
importância vital para os cristãos.
Na atual
emergência, seria difícil a adoção repentina de uma nova forma, moderna e
revolucionária de ser Igreja, capaz de novamente cativar o povo, especialmente
os jovens. Estes criarão artificialmente a ilusão de sua presença na vida da
Igreja no encontro da juventude com o novo papa no Rio de Janeiro. Será apenas
uma pequena multidão como a dos fogos do ano novo em Copacabana. Prevemos o
esforço para passar a ideia de um “retorno massivo” de jovens para a Igreja.
Eles já estão muito distantes dos espaços religiosos, aqui e especialmente na
Europa. Esse fenômeno do envelhecimento dos cristãos sem jovens para mantê-la
viva, preocupa. Só uma Igreja assumida como sinal dos tempos, com seus valores
originais calibrados para a cultura atual, os trará de
volta.
Com a
inesperada renúncia do papa, poderia acontecer uma surpresa igualmente
inesperada mas certamente possível: a eleição não de um papa de feitio
tradicional mas de um gestor eclesiástico de transição, com o título próprio de
administrador apostólico ou outro similar, dividindo com um colegiado as funções
e responsabilidades atuais de um papa, com tempo certo e limitado de gestão, com
a missão de conduzir as mudanças que o povo de Deus espera, como um novo passo
do aggiornamento que João XXIII inaugurou há 50 anos, mas parou no
tempo.
A
adoção de uma transição de tempo certo, para consultas, estudos, avaliações, com
metodologias adequadas, não impositivas nem manipuláveis, seria possível. O
Espírito de Deus certamente inspiraria caminhos aos condutores desse processo
que culminaria com a eleição adiada de um papa de novo perfil e missão, em um
concílio de consolidação de todas as mudanças adotadas.
*Membro do
Movimento Familiar Cristão (MFC)
Os Anos de
chumbo (XI)
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