IHU
On-Line - O que esperar de um cenário em que, ao mesmo tempo, se diluem as bases
tradicionais de pertença religiosa, a liberdade religiosa, o pluralismo e a
secularização e se abre espaço para projetos religiosos de viés conservador e
fundamentalista?
Luiz
Benedetti - Para mim, aqui
está a raiz dos problemas que a Igreja enfrenta. Discute-se realmente no
interior da Igreja essas questões? O viés conservador se radica muito mais na
ausência de discussão séria e competente para fazê-lo do que em posições
doutrinárias que, conservadoras ou não, alimentem o debate e dinamizem a
recepção ativa da ortodoxia e alimentem uma praxis criativa. Valha repetir o
exemplo: a religiosas norte-americanas incomodam o aparato burocrático porque
são competentes no exercício de seu serviço cristão e na capacidade de dialogar
com o mundo. E aí vem a intervenção disciplinar, de caráter punitivo, ao invés
de se deixar interrogar por uma postura social e eclesialmente responsável. Isso
sem falar no levantamento prévio da suspeita.
Na
atual conjuntura eclesial parece em curso um processo de mediocrização
crescente: imposição acrítica da doutrina, a falta de uma hermenêutica séria na
pregação da Palavra, valorização do espetáculo e pompas rituais, as grandes
concentrações e a decadência de uma educação teológica de caráter sapiencial e
reflexivo ilustram o quadro.
IHU
On-Line - Quais os maiores desafios que a Igreja precisa enfrentar na
contemporaneidade? Como ela tem feito isso, na sua opinião?
Luiz
Benedetti - Diria,
simplificando e muito, que a Igreja se encontra numa encruzilhada, num dilema:
abrir-se ao mundo e dialogar com ele ou fechar-se sobre si mesma. No primeiro
caso, precisa qualificar-se e sua política de silenciamento dos teólogos, de
intervenção em grupos socialmente atuantes e gozando de reconhecimento social
explícito (caso
das religiosas americanas) mostra que não foi este o caminho escolhido.
No segundo caso, fechar-se sobre si mesma, leva a refugiar-se em modelos
institucionais de pensamento, ação e formação de quadros que deram certo numa
determinada época histórica. Seminário, paróquia, o uso do latim como língua
universal constituem aspectos sintomáticos de uma totalidade fechada e imune às
interrogações da realidade. Sente-se na Igreja um centralismo crescente
preocupado com sua autoreprodução. Um exemplo está na preocupação em fortalecer
o status institucional católico da Caritas, fortalecendo sua identidade
confessional até mesmo caminhando numa direção proselitista em um campo que
sempre foi muito além do assistencialismo. Deu força a ações encarnadas e
encarnatórias acima de horizontes ideológicos. Estes não podem ocupar o lugar
que cabe à “Graça”. Mostrar-se católico, neste caso, pode aparecer como uma
logomarca da ação caritativa (que não conhece horizontes
confessionais-ideológicos). No campo da cultura, o “imbróglio”Universidade
Católica do Peru caminha na
mesma direção.
IHU
On-Line - Como o senhor percebe a postura de Bento XVI de robustecer a Igreja
Católica frente aos desafios impostos pelo avanço do pluralismo religioso e
cultural?
Luiz
Benedetti - Robustecer a
Igreja num mundo de pluralismo religioso e cultural significa, antes de mais
nada, preparar quadros qualificados para o diálogo adulto e responsável. E isso
só é possível em clima de liberdade. Quando esta desaparece, ou pior, cede lugar
ao medo, instaura-se a mediocridade, cria-se um saber de manual, de repetição de
fórmulas. Pior: alimenta-se a imagem da Igreja como praticante de uma espécie de
polícia do pensamento tão a gosto da imprensa que explora à saciedade esta
faceta. Aliás, nem sempre de maneira justa. Só que não se pode esquecer: livros
proibidos provocam corrida às livrarias e seus autores adquirem respeito e
guarida em centros de produção de pensamento, que prezam acima de tudo a
competência e honestidade intelectuais. Por outro lado, não se pode esquecer que
esse quadro de mediocrização se generaliza cada vez mais no ambiente acadêmico
como um todo.
IHU
On-Line - Como o campo religioso católico brasileiro se articula com o cenário
internacional da Igreja? Qual a especificidade do catolicismo
brasileiro?
Luiz
Benedetti - O último
censo diz tudo. A
sensação, pessoal, e, por que não, o temor, é o de uma Igreja que caminha para a
irrelevância social. Mais adaptada ao mundo (que combate) do que parece.
Fixemo-nos num dado: a prática cultual. Um padre mostrou-me a assembleia reunida
para a Eucaristia e comentou: somos cada vez mais a Igreja das cabeças brancas.
Referia-se a faixa etária dos participantes. O catolicismo brasileiro, na
realidade, são catolicismos. Se tomarmos o catolicismo “oficial” (na falta de
outro termo) a esperança reside no profetismo, num catolicismo de resistência, o
mesmo que assumiu o Vaticano II, combateu a ditadura e luta pelo direito dos
pobres. Nas comunidades, pouco visíveis, mas capazes de uma solidariedade
pequena, despojada, mas que faz frente ao individualismo contemporâneo. Quanto
ao catolicismo popular: o pentecostalismo se alimenta dele. Os cientistas
sociais se perguntam: não será ele, em suas formas novas, um catolicismo rural
urbanizado?
IHU
On-Line - Fazendo uma breve retrospectiva da diversidade e da unidade da Igreja
Católica e de seus dilemas entre o início da década de 1960 e a década de 1990,
como o senhor percebe a Igreja hoje, em comparação a este período? Qual o espaço
que ocupam hoje, para os fiéis católicos, as três vertentes básicas da
instituição: Templo, Praça e Coração?
Luiz
Benedetti - Nos anos 1960 a
unidade se dava em termos de uma pastoral planejada, de atuação colegiada dos
bispos. Havia uma “vanguarda” episcopal, nomeada por D. Armando Lombardi, que buscou entre
os padres que eram assistentes da Ação
Católica, bispos capazes de dar um novo perfil ao episcopado, sensíveis
à dinâmica histórica, aos problemas da realidade social em transformação,
capazes, no dizer de um acadêmico, de aprender com os leigos e escapar ao mundo
da formação seminarística (no seminário não se podia ler Jacques
Maritain). A consagração dessa realidade pelo Concílio
Vaticano II, dando à colegialidade episcopal um papel “sacramental”
foi radicalmente alterada com a “ligação” direta bispo-papa, a colegialidade
reduzida a um agregado “afetivo”, a obediência livre e responsável substituída
pela submissão em todos os níveis da vida religiosa católica, os movimentos de
caráter emocional-intimista, doutrinariamente fundamentalistas alteraram
radicalmente o quadro de “utopias” em ação dos anos 1960. Mas é preciso
acrescentar. Nos anos 1960, as Igrejas oriundas da Reforma viviam a mesma
efervescência. E se alimentavam umas às outras. As produções do Conselho
Mundial de Igrejas eram lidas por nós. Hoje o mesmo processo ocorre ao
inverso:
Templo: poucos jovens, rituais que seduzem menos
pelo mistério e pela Palavra que pela pompa vazia e mentalidade rubricista.
Praça: os leigos estão no mundo, lugar de exercício
de sua vocação batismal? Os ministérios leigos não representam uma saída para o
verdadeiro problema que é a busca de novas formas de exercício do sacerdócio
ministerial? Por isso mesmo, no momento não estão na praça. São
clericalizados.
Coração: não se vê um horizonte favorável aos
movimentos de caráter emocional. Há uma sensação, apenas uma sensação, de
esgotamento. Mesmo porque são incapazes de agir sobre a sociedade em que
surgiram e transformar a Igreja que lhes deu força. E mais: o forte componente
emocional tende a se esgotar rapidamente e não deixar nada no seu lugar.
IHU
On-Line - Qual o sentido do fundamentalismo religioso contemporâneo? Como ele se
relaciona (e talvez se justifica) com outros fenômenos de nosso
tempo?
Luiz
Benedetti - Há que se escapar
de uma visão que o vincula estreitamente às suas origens, fundadas na reação ao
evangelismo liberal, à recusa de uma hermenêutica “moderna” na compreensão da
Palavra de Deus. Ele é bem mais que isso. É uma atitude de vida, um modo de ser
no mundo. Nesse sentido ele se apresenta como adesão irrestrita a um Grande
Texto, assumido literalmente. Pode ser a Bíblia, o Alcorão, a própria
Constituição de um país (um fundamentalismo tipicamente americano, no dizer de
Agnes Heller). Apresenta-se como um modo de fazer frente a uma desordem e
fragmentação internas, provocadas pela subjetivação intimista que faz do gosto
pessoal o critério último da consciência moral. Mas é preciso perguntar: será
que a sociedade recusa os parâmetros que a Igreja prega? Ela precisa deles e os
solicita. O que ela recusa é a imposição pela violência – simbólica ou física.
Mesmo porque esses parâmetros são funcionais. Eles delimitam o campo da ação
“legítima” e, nesse sentido, “situam” num mapa significativo indivíduos e
grupos. Os indivíduos sabem o que é certo ou errado. E isso traz segurança.
Impede que sejamos, na expressão de Berger,
“homeless
mind” (um mundo sem lar). O que, em absoluto, não quer dizer que se
norteiem pelos parâmetros propostos. Uma demonstração de que a sociedade não
recusa verdades está na aceitação e difusão ampla da literatura de autoajuda, um
tipo de guia que traz pronto um mundo no qual não é preciso pensar, refletir,
escolher, decidir. A autoajuda dispensa o discernimento e a escolha. Responde ao
homem moderno cuja angústia é ter que escolher.
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